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Geração à Esquerda

Geração à Esquerda

Um olhar neutro face à Eutanásia

[Este artigo surge como produto de apontamentos de Bioética, do Curso Complementar de Formação em Filosofia em que estou inscrita. Informo que é um texto extensivo e maçudo de ler, parar e voltar a ler, mas julgo que a questão assim o exige. Espero que haja algum leitor que goste e tenha paciência para analisar e contrapor algo. Sei ainda que me dirão que, uma vez mais, falta a minha opinião expressa, mas julgo que o cultivo de opiniões ganha também pela exposição neutral de argumentos e contra-argumentos, procurando apenas a organização e solidificação dos mesmos na ajuda do leitor a definir a sua posição face à matéria em causa.]

 

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Eutanásia aparece pela primeira vez referenciada num texto de Posidipo de Pela (300 a.c.) “De tudo o que o homem deseja obter, nada é melhor do que a morte doce”, Fragmento 19. Denominada inicialmente enquanto adjetivo e provérbio, a eutanásia ressalta enquanto substantivo numa segunda instância na Grécia e Roma. A discussão em torno da matéria, em termos de bioética, parte essencialmente de três princípios basilares: o princípio da autonomia, o princípio da benevolência e o princípio da justiça.

Muitas são as questões que não estão hermeneuticamente contidas, tendendo os argumentos facilmente para ambos os lados ao mudar de uma ou duas palavras. Em termos do primeiro mencionado: Cada um é que sabe o que a sua vida vale, devendo ter assim, direito de dispor da sua própria vida quando assim entender. Um pensamento que segue na ótica do estoicismo, i.e. domínio do ser sob si próprio. Um autor com este posicionamento ético sob a vida (hábitos, virtude e autodomínio) a mencionar é Fílon de Alexandria (+- 15 a.c. – 50 d.c.) em De Sacrificius Abelis et Cainis. Mas este argumento acaba por ser atacado com o fator de posse ou colonização do ser, que outrora levou a casos de autoesclavagismo. A bancada contrária afirma assim que o homem não tem, nem poder ter, posse sob si mesmo. O que ainda assim não deixa de ser paradoxal com referências Louis Pasteur e a Vacina Contra a Raiva, ou atualmente, face às notícias que vimos acerca de ensaios clínicos como o teste da bial (não é das notícias mais recentes serve apenas para reforçar o país, no qual, estes testes são realizados).

O ser humano não se basta por si só, dependendo imperativamente do outro – é inconcebível uma sociedade onde a autonomia desconheça os limites; a autonomia é o limite da própria vida. Seria fácil referenciar a frase de Aristóteles de que “O ser humano é um ser social”, embora pareça agora antagónico, a verdade é que aqueles que eliminaram a possibilidade de uma vida após a morte, eram apologista desta mencionada morte digna, como o autor acima mencionado e ainda Platão.

Como é possível verificar, a definição e debate de temas como a morte e a vida, acompanha o Homem ao longo dos anos. O facto de se verificar, a evolução semântica do conceito de morte, acaba por influenciar a projeção destas matérias na sociedade. “A morte é o fim, a vida é mito” ou “A vida é uma aprendizagem da morte”, Platão (428-347 a.c.) procura demonstrar que a certeza da morte pode projetar na vida a perda de sentido. A verdade é que o único ser vivo que tem consciência do vazio da morte, do seu fim como única certeza é o ser humano.

Mas nesse mesmo sentido, da vida em comunidade, quem é contra a Eutanásia afere que uma pessoa não pode pedir à sociedade (ou, comunidade de acolhimento) algo que esta não lhe pode dar, é dever acolher incondicionalmente qualquer indivíduo pelo simples facto de sê-lo (enquanto ser humano). Jürden Habermas na pós-metafísica segue esta mesma vertente de raciocínio, tem como base que o ato constitutivo da sociedade é um ato igual entre todos no mesmo meio, em que o ser humano não pode excluir seja quem for da sociedade, mas o indivíduo pode sair, se assim o entender, per si (só).

Tocando no atual tabu social, faz-se referência à disposição de uma vida alheiaSerá tirania de quem pede, ou de quem tira essa vida humana? Algo clareado e defendido nos pequenos trechos iniciais da CRP, de que os homens nascem iguais à luz do Estado de Direito. Agora voltando à questão da propriedade, neste mesmo lado da bancada, defende-se que cada um pode dispor daquilo que tem (enquanto propriedade), mas a vida não é algo que se tenha posse, é (sim) um modo de ser. A meu ver este argumento acaba por ser um pouco forçado, intelectualmente pouco sério. Pois em termos de origem semântica e etimológica a eutanásia designa algo vivido, uma qualidade dos últimos instantes de vida: a morte adjetivada enquanto boa, doce, bela, digna e gloriosa.

Existem muitos mecanismos de lança fumo à discussão desta temática, mas uma das mais visíveis é o caráter interpretativo e falta de absolutos que deixa a discussão em aberto. A própria caracterização da dignidade, entre outros adjetivos face à morte, apenas vem a denotar a relatividade possível nos diferentes polos da sociedade. Cícero (106-43 a.c.) fala da morte digna numa ótica da heroicidade, da morte do herói, coroando-a de um determinado modo.

Quem somos nós para recusar a outro o direito a pôr termo à sua vida? Devemos garantir ao outro a possibilidade de morrer antes de perder a dignidade” Esta perda de dignidade pode compreender-se pela perda capacidade de comunicação/ relação, dependência (o necessitar de auxílio/ ajuda), autocontrolo que acabam por consequentemente provocar a exclusão social do ser. Há quem considere o oposto, que a dependência não retira qualquer dignidade à vida humana, indigno é sim, não cuidar do indivíduo.

Por último, ainda dentro do princípio da autonomia aparece, a favor, a argumentação de que a autorização da eutanásia não é obrigar ninguém a pedi-la para si mesmo, apenas dar a opção. Mas rapidamente surge a contra-resposta de: “criar-se-á algo que ninguém dará uso?” A verdade é que Suetónio (63 a.c. – 14 d.c.) em Vidas dos Doze Césares, afirma que “A eutanásia designa morrer rapidamente e sem sofrimento”, enquanto algo que César Augusto pedia para si e para terceiros. Atualmente traduzindo: “Espero que a morte me apanhe a dormir”.

Numa segunda ótica, no princípio da benevolência, cada lado puxa a corda a seu proveito, contrapondo exatamente o mesmo argumento: não acabar com o sofrimento, podendo pôr-lhe termo é maleficência (não é solicitude, é falta dela), é obrigar uma pessoa à agonia lenta e dolorosa, prolongando assim a morte. Sendo que deste lado, a favor, a Eutanásia acaba por ser vista enquanto única alternativa ao encarceramento terapêutico.  Para quem é contra, não é à dor que é colocado um termo, mas sim ao sujeito sofredor, defendendo que ninguém é descartável receando a Eutanásia vir a ser um refúgio ao propósito da solidão, como se verifica atualmente, no caso do idoso, cujo abandono num simples hospital da capital do país ultrapassa os três dígitos anuais (embora aqui possa vir a existir uma clara mudança de padrão, SNS não apenas em meio hospitalar mas também no serviço à comunidade no domicílio).

O termo da Eutanásia tinha acabado por cair no esquecimento até ao séc. XVII, sendo depois recuperado pelo progresso das ciências com Francis Bacon (1605) em De Augmentis Scientiarum, Livro II, entre outras obras: “(…) aperfeiçoar ao mesmo tempo a sua arte e proporcionar ajuda para facilitar a agonia e os sofrimentos da morte.”; “Considero que a tarefa do médico não só fazer recuperar a saúde, mas também atenuar o sofrimento e as dores (…)”. É nesta última linha orientadora que o contra se guia, em que a solução não passa por terminar com a dor, mas sim na procura de proporcionar a manutenção da vida nem que seja de modo artificial.

A discussão prossegue com Thomas Morus em Utopia, David Hume em Of Suicide, Lutero, Karl Marx em Medical Euthanasia e Arthur Schopenhauer. Nos finais do séc. XIX surge o seguinte sentido, enquanto dominante, e produto do princípio da causalidade: “(Eutanasia =) Ato de provocar voluntariamente a morte do doente, administrando substâncias letais para lhe evitar o sofrimento e permitir a morte doce.” Acentuando-se já no séc. XX uma dimensão mais forte da morte enquanto digna e voluntária, uma vez que neste período se desenvolveu muito a terapia da dor, não de eliminação da doença, mas sim contenção e redução da dor através da medicina intensiva e/ ou através dos chamados paliativos.

O debate sobre a Eutanásia, neste mesmo século, acaba por tomar várias formas levando à criação dos mais variados acordos e instituições de esfera política e comunitária em prole ou contra a matéria. Alguns exemplos a mencionar é o Decreto da Eutanásia de outubro 1939, Adolf Hitler numa falsa misericórdia pelos doentes incuráveis (de notar que Hitler considerava penoso o doente pelo seu estado clínico) numa espécie de darwinismo social ou higienização social.

Prosseguindo nesta visão cronológica do conceito na sociedade, em 2011 o conceito de sofrimento sofre alterações, sendo que o caráter voluntário do pedido e o caráter duradouro do sofrimento não devem ser os únicos critérios a ter em conta para a sua aceitação da sociedade (NNMG). Atualmente os países onde é já legal a prática da eutanásia são: Holanda, Bélgica, Luxemburgo e alguns Estados membros dos EUA.

A manipulação do discurso foi um dos mecanismos utilizados em todos estes Estados onde a Eutanásia, ou morte assistida, é já legal. Por manipulação do discurso entenda-se todos os argumentos aqui dispostos, assim com o uso da declaração de notáveis da sociedade, como se pode verificar estar já a ser já um meio utilizado na sociedade portuguesa.

Em consequência da aprovação desta lei surgem mecanismos defensores do Direito à Vida, como por exemplo, a Associação de Doentes Holandeses e a Fundação Santuário criam os chamados “passes para a vida” numa ótica corruptiva da voluntariedade do indivíduo que não detém modos de comunicar, permitindo às pessoas ter como que um testamento vital em defesa que não querem que se ponha termo à sua vida independentemente do estado clínico. É de denotar que a Igreja é a instituição que mais posições toma, até hoje, contra a Eutanásia na argumentação de que esta corresponde a uma violação ao Direito à vida. Já no Princípio da Justiça: “algo que se lutou tanto tempo e agora se pede para lutar pelo oposto”. Pergunto-me honestamente se: o cenário de guerra não é per si já uma violação do Direito à Vida? Ou o próprio aborto não será já uma violação desse mesmo direito? (Embora o feto não detenha personalidade jurídica; ou contra o Juramento de Hipócrates)

Neste sentido jurídico um argumento contra e favorável, a meu ver, passa pelo facto de que a dignidade consagrado na DUDH é ontológica, não variar consoante as circunstâncias. Pelo que ascende a dúvida face a Eutanásia “aberta” a menores ou não. Embora seja óbvio o facto do menor não deter total consciência moral. Um elemento contra neste argumento, em tom irónico, passa por questionar se a sua dor é menos relevante da dor de um adulto por exemplo. Ainda assim, a favor, considera-se uma injustiça forçar o outro a sujeitar-se às nossas convicções pessoais, privando-o de algo que este pede e/ ou está em conformidade com as suas convicções.

Concluindo a defesa procura reafirmar que embora matar seja encarado enquanto um ato pejorativo, na maioria dos casos, não significa que o seja sempre, i.e., que seja regra, uma vez que neste caso específico se procura a legalização da Eutanásia Ativa Voluntária (* ver imagem com tipos de eutanásia existentes) onde para além de serem pedidas garantias face a esse óbito, terá de ser deliberada tendo em base vários critérios. A argumentação contra parte essencialmente do receio de manipulação da lei com base num pessimismo antropológico de perversidade do ser humano em praticar o mal. Findando que se a eutanásia se tornar um direito (que pressupõe um novo dever, de pedi-la ou praticá-la) para quem a pedir, sê-la-á também para aqueles que não a pedem. Não será a Diretiva Antecipada de Vontade (DAV) um mecanismo para o impedir? Qual a certeza de que a decisão ainda se mantém?

 

Três últimas reflexões que ficam ao seu critério:

Qual será a licitude moral que advêm desse direito?

Em que patamar está inserido o doente portador de uma doença irreversível e/ ou incorável no critério da dor?

Poderá a legalização da eutanásia contornável (ou mais detectável) ao diagnóstico psiquico-patológico do paciente? (Referência à tese de Ehrenberg; Freud; sofrimento psíquico)

 

Raquel Rodrigues Carvalho

Colaboradores

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